domingo, 12 de fevereiro de 2017

União Estável ou Namoro Qualificado?



Com o passar dos anos o homem foi (e continua) aprimorando as relações e o convívio social. De certo modo, a evolução não foi tão rápida, mas o Direito, com seus passos lentos, muitas vezes não consegue acompanhar esta evolução na mesma exigência necessária para a solução dos conflitos existentes. 

Facilmente nos deparamos com escrituras ultrapassadas acerca das relações ou até mesmo da entidade familiar, começando pela Bíblia (Gênesis 2:18[1], Gênesis 2:24[2], Mateus 19:4-6[3], Efésios 5:33[4]) e finalizando na Constituição Federal de 1988, nossa Carta Magna da garantia dos direitos fundamentais, nosso aparato na incansável luta pelos direitos. 

A Constituição Federal/88 regulamenta o conceito de família através da união formada por um homem e uma mulher com a exclusividade do interesse em constituir família, independente da geração de filhos ou até mesmo de morarem juntos, assim, com a Carta Magna, o casamento deixa de ser o único meio para constituição de família, um marco na conquista dos direitos, principalmente porque a concepção de família se desprendeu das questões religiosas e patrimoniais ou do único caráter da procriação, sendo reconhecido a partir de então, valores e princípios norteadores dos direitos fundamentais como a amizade, o companheirismo, o amor, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social  e também, a afetividade que passa a ter dimensão jurídica. 

Como bem sabemos, há outros tipos de relações familiares reconhecidas e protegidas pelo Estado, como a família monoparental (formada por qualquer dos pais e os filhos), mas nossa reflexão se fixará na união estável, reconhecida expressamente pela Constituição de 1988 mas que somente em 2014, ou seja, somente após quase três décadas convivendo socialmente com a legalidade da união estável, que a sociedade conseguiu alcançar a efetividade da garantia da segurança jurídica com a permissão dos registros nos Cartórios de Registro Civil.
Art. 226. A família, a base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

A união estável prevista na Constituição Federal e regulamentada pela Lei n. 8.971/96 (direito dos companheiros a alimentos e sucessão) e a Lei n. 9.278/96 (união estável) até então, preterida pelo casamento nos institutos normativos. Mas, devido aos avanços sociais, aqueles que impulsionam a sanção de novas normas, em 2002, no art. 1723 do Código Civil, o legislador perdeu força na preferência.

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Deste modo, com garantias constitucionais e dotada dos preceitos de entidade familiar, o doutrinador Rolf Madaleno[5] define com êxito o conceito de união estável

representada pela convivência de homem e mulher, podendo até não coabitarem, mas que, solteiros ou casados, desde que separados de fato ou judicialmente, divorciados ou viúvos, se apresente o casal aos olhos da sociedade como se fossem marido e mulher. Unidos pela inequívoca intenção de constituírem uma verdadeira família, a relação não precisa ter sua origem legal apenas no casamento, pois na relação informal estável entre o homem e a mulher é reconhecida uma entidade familiar, cujo conceito se estende também à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, conforme os §§ 3º e 4º do artigo 226 da CF.

Cabe ressaltar que o ápice do reconhecimento jurídico da união estável não está em residirem juntos e sim, na publicidade do ato, ou seja, a convivência pública e duradoura com o intuito sobretudo, de constituir família. 

Neste contexto, identificamos a diferença entre união estável e namoro qualificado. Primeiramente, não há norma que regulamenta o namoro como relação social ou, relação familiar; tal reconhecimento compete aos bons costumes sociais, além claro, da jurisprudência. Assim como na união estável, a publicidade e a constância da relação são requisitos fundamentais para a caracterização do namoro, considerando também a fidelidade recíproca. 

De acordo com Carlos Alberto Dabus Maluf[6], o namorado qualificado

Trata-se, na prática, da relação amorosa e sexual madura, entre pessoas maiores e capazes, que apesar de apreciarem a companhia uma da outra, e por vezes até pernoitarem na casa de seus namorados, não tem o objetivo de constituir família.

Portanto, apesar das semelhanças entre união estável e namoro qualificado o fator preponderante da diferença é o objetivo em constituir família, presente somente na união estável. 

No namoro qualificado, ainda que possa existir no futuro a intenção em constituir família, não há ainda, a comunhão de vida, como reforça Maluf. Mesmo evidenciada a convivência amorosa pública, contínua e duradoura, as partes ainda preservam sua vida pessoal e a liberdade, e sobretudo, os interesses particulares não se confundem e a assistência moral e material recíproca não é totalmente irrestrita.[7]
 
Separados por uma linha tênue, não é demasiado ressaltar que namoro qualificado e união estável não são sinônimos e possuem diferente caráter de relação social. A dificuldade surge porque no relacionamento contínuo os casais começam a fazer projeções futuras com o propósito de constituir uma família, mas não por isso vivenciam uma relação de união estável, porque a intenção em formar uma entidade familiar tem que ser no presente, bem como, a presença do affectio maritalis, ou seja, a afeição conjugal, isto é, o desejo recíproco dos cônjuges de se tratarem respectivamente como marido e mulher deve ser considerado. 

Em suma, o propósito em constituir família conceituará o tipo da relação social, união estável ou namoro qualificado.


[1] Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá a sua mulher, e eles tornarão uma só carne.
[2] Criou Deus o homem a sua imagem, a imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou.
[3] Ele respondeu: “Vocês não leram que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ e disse: ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá a sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’. Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separa.
[4] Portanto, cada um de vocês também ame a sua mulher como a você mesmo, e a mulher trate o marido com todo o respeito.
[5] Madaleno, Rolf. A união (ins)Estável (relações paralelas). (?)
[6] MALUF, Adriana caldas do Rego Freitas Dabus - Novas modalidades de família na pós-modernidade, São Paulo; Saraiva, 2010,p.106.
[7] Cf. voto do Min. Marco Aurelio Bellize - 3. Turma 0 no REsp 1454643 / RJ - RECURSO ESPECIAL - 2014/0067781-5

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Descentralização do SUS e sua eficiência na prestação de serviços de saúde



As transferências intergovernamentais desempenham um papel de destaque na área de saúde no Brasil. Desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), concebido a partir da Constituição de 1988, a descentralização fiscal e administrativa, além da redistribuição dos recursos entre as regiões brasileiras, são aspectos que vêm sendo desenvolvidos.
Visando garantir universalidade, equidade e integralidade na assistência à saúde, e sob a ótica de que os governos locais têm mais condições de identificar necessidades específicas, o SUS tornou os municípios os principais responsáveis pela gestão da saúde de sua população, na teoria. No que se refere ao financiamento, a legislação exige que recursos das três esferas de governo sejam necessariamente aplicados na área da saúde. Assim, para que sejam geridos pelos governos municipais e para que haja uma redistribuição ao longo do território, os recursos são destinados a fundos e transferidos aos estados e municípios.
A maior parte das transferências realizadas através do SUS estão inseridas nas modalidades conhecidas como “fundo a fundo” e são obrigatórias e condicionais. Isso significa que elas são realizadas de forma automática e compulsória e devem, necessariamente, ser aplicadas em fins específicos na área da saúde.
Diversos e muitos são os problemas do SUS. Contudo, dois deles precisam ser pensados em razão dos graves males que causam à gestão do SUS. São dois problemas que se interligam. Um deles é a transferência de recursos da União para Estados e Municípios e o outro, a posição do STF de que todos os entes federativos são solidários na prestação de serviços de saúde à população, independentemente de seu porte demográfico e econômico.

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O primeiro deles, o da transferência de recursos da União para os Estados e Municípios, é o entendimento do STF de que recursos federais, mesmo quando repassados a estados e município, continuam federais e devem ser fiscalizados pela esfera federal – controle interno, a Controladoria da União (atual Ministério da Transparência) e a auditoria do SUS – e o controle externo, o Tribunal de Contas da União (TCU). Isso significa dizer que repassados os recursos, esses recursos continuam federais e devem ser fiscalizados pela União. Eles não integram os recursos dos entes federativos recebedores, e por isso, não devem ser fiscalizados pelos seus sistemas de controle interno e externo.
Associando esse fato – controle federal – com as determinações do Ministério da Saúde no uso do dinheiro transferido, sempre sob a forma de incentivos a programas federais, ou seja, por adesão a esse ou aquele programa, os gestores do SUS passam a ter que cumprir as determinações federais sem a possibilidade de poder gerir seu plano de saúde, fruto de discussão e aprovação do conselho de saúde e que deve ser o espelho das necessidades de saúde do município ou da região ou do estado.
Essa forma de repasse de recursos e a decisão de que o recurso federal não perde sua coloração quando adentra o orçamento estadual ou municipal mitiga a autonomia do gestor da saúde na condução do seu sistema, de acordo com o planejamento local, regional e estadual. A definição, nos mínimos detalhes, do gasto dos recursos federais da saúde transforma o SUS num grande convênio, ferindo o planejamento ascendente ou integrado, uma vez que as determinações são prévias ao planejamento; serão elas que irão definir o planejamento da saúde no nível estadual e municipal.
E passa-se a controlar o gasto da saúde minuciosamente, não de acordo com o plano de saúde – base de todas as despesas de saúde de acordo com a lei – mas sim de acordo com o definido nas portarias que dispõem sobre os incentivos a este ou aquele programa.
O segundo ponto – a solidariedade dos entes federativos na prestação dos serviços de saúde – é outro problema grave, diante da grande diversidade demográfica, econômica do nosso país.  Estima-se que 70% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. E o nosso sistema de saúde é um sistema hierarquizado em termos de complexidade de serviços, cabendo a determinados entes federativos a prestação de serviços de maior ou menor complexidade, sendo impossível pensar em um sistema de saúde que imponha a todos os entes federativos – 5.564 municípios e 27 estados – uma igualdade de prestação de serviços. Seria um arrematado absurdo pensar num sistema de igualdade de responsabilidades e obrigações, quando os mesmos são totalmente diferenciados em população, renda, desenvolvimento econômico etc. e na própria responsabilidade com a prestação de serviços.
São problemas que afetam o centro do sistema de saúde que é o seu financiamento e a sua gestão. Podemos falar em um sistema descentralizado, com competências próprias dos entes federativos se grande parte do recurso que o financiam são considerados federais, com definição de sua aplicação pela esfera federal?
Assim, em uma realidade em que a grande maioria dos municípios tem a prestação do serviço de saúde financiada pelo repasse de fundos federais, outro ponto importante é o tamanho do impacto nos orçamentos municipais com a implementação da PEC 55 e o teto de gastos para os recursos federais com a saúde, apesar da proteção das transferências constitucionais. Não só um investimento de melhor qualidade na saúde é necessário, mas também, uma gestão mais eficiente desses recursos.

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Delação premiada: como funciona?

Delação premiada. Com o desenrolar da Operação Lava Jato, essa se tornou uma das expressões jurídicas mais comentadas dos últimos tempos. Nesta mesma semana, estampou a capa de diversos jornais a notícia de que a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, homologou na manhã de segunda-feira 77 delações.
A quantidade de reportagens publicadas e o furor provocado nas redes sociais apontam para a relevância dessas duas palavrinhas. E não é para menos.
A delação premiada é um instrumento jurídico por meio do qual o acusado de um crime fornece informações essenciais ao avanço das investigações, recebendo, em troca, benefícios em sua pena.
Para que seja considerada válida e eficaz, a colaboração deverá ser voluntária e produzir resultados que de fato contribuam para o andamento do processo. Além disso, o colaborador, ao prestar depoimentos, renuncia ao seu direito de silêncio e se compromete legalmente em dizer apenas a verdade.
Os resultados esperados advindos da colaboração do agente, de acordo com os incisos I a V, art. 4º da Lei nº 12.850/2013, são:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

O instituto foi normatizado pela primeira vez, na legislação brasileira, por meio da Lei de Crimes Hediondos, onde há previsão de redução da pena de um a dois terços. No entanto, também poderá ser aplicado nos casos de lavagem de dinheiro e crime organizado, conforme descrito na norma supracitada.
Além da redução de até dois terços da pena, poderá ser concedido o benefício de perdão judicial ou, ainda, substituição por pena restritiva de direitos.
Deverá ser formalizado acordo entre o colaborador, o seu advogado, o delegado de polícia e o representante do Ministério Público. Posteriormente, o termo de acordo precisará ser encaminhado ao juiz, que após verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, o homologará, iniciando, assim, o procedimento da colaboração.
Há, entre os juristas, quem considere a delação premiada uma espécie de coação, tendo em vista a desproporcionalidade existente entre os órgãos estatais e o acusado. No entanto, a lei é clara quanto a obrigatoriedade de que haja manifestação voluntária. O instituto é norteado pelo princípio da autonomia da vontade, logo, ninguém será obrigado a fornecer informações.
Vale ressaltar que a lei declara expressamente que não serão proferidas sentenças condenatórias baseadas exclusivamente em declarações de agentes colaboradores. Tal regulamentação traz segurança jurídica ao processo, uma vez que deverão ser apresentadas outras provas para que alguém seja considerado culpado.

As afirmações proferidas servirão de apoio ao avanço das investigações e, assim, beneficiarão toda a sociedade.