quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Maria da Penha e a Delegacia da Mulher

Se você jogar “Maria da Penha” no google, em poucos minutos vai descobrir que a mulher que deu nome à lei é cearense, farmacêutica, tem três filhas e foi vítima de violência doméstica durante anos a fio. Seu marido tentou matá-la por duas vezes e na última, a deixou paraplégica. Maria fez um escândalo, nunca desistiu e dezenove anos depois – sim, quase duas décadas – seu agressor foi preso, o caso chegou ao conhecimento da  Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e fez com que fosse sancionada a  Lei nº 11.340/2006, cunhada de seu nome e com a premissa de proteger de forma mais severa, as mulheres vítimas de violência. 


A história é bonita, uma superação sem fim, mas e o dispositivo legal, será que funciona? 
Em 2016, a lei completou seus dez anos, nesse quais, em mais uma breve pesquisa, pode-se ver que seus números se mostram sempre inconclusivos, o que nos evidencia uma falha em sua aplicação, embora, segundo IBGE, por ano, mais ou menos um milhão de mulheres sejam vítimas só de violência doméstica em nosso país e que só Sergipe, dentre nossos vinte e seis estados – e o DF – tem dados completos desde o ano de início de vigência da lei, sobre condenações e sua aplicação.
O IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – nos traz a estimativa de que dentro deste 1,2 milhão de mulheres em situação de violência que o senso contabiliza por ano, apenas 500 mil casos chegam ao conhecimento da polícia. O porquê de isso acontecer, pode ter várias razões, dentre elas, nos cabe lembrar que até 1995 a mulher não podia prestar queixa em delegacias contra seu cônjuge e até o ano de 2009, três após a criação da lei, o crime de estupro era considerado crime contra os costumes e não contra a dignidade sexual. Esses fatos, somados a diversos relatos de atendimentos regados a descaso nas delegacias especializadas no atendimento da mulher podem ser o denominador comum que resulta na ineficácia desse dispositivo tão importante  reconhecido mundialmente.



A lei versa sobre coibir a violência, mas não só sobre isso, através dela nos vimos diante de um novo patamar de proteção às vítimas, podendo adotar medidas protetivas e assecuratórias para zelar a vida das mesmas e traz ainda, em seu título terceiro, sobre a promoção de estudos, celebração de convênios e protocolos, campanhas educativas sobre o assunto e até capacitação de nossas polícias e corpos de bombeiro para o atendimento especial destes casos. E é neste último ponto, que novamente saliento, que se recai o problema.
As delegacias da mulher existem há trinta anos, tendo então mais do dobro da idade da criação da lei, mas o comportamento dentro das mesmas pouco mudou desde então. Com profissionais desestimulados e com remunerações baixas, sem investimento em capacitação e tampouco em sua sensibilidade, o acolhimento acaba sendo feito de forma similar à de delegacias comuns, faltando o tato e a seguridade psicológica garantida praquelas que ali chegam. 
A idéia de se criar uma delegacia da mulher não teve origem nos movimentos feministas e de mulheres mas sim, em resposta às críticas feministas sobre o atendimento policial a mulheres em situação de violência, que fez o então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, apresentar ao governo e ao movimento a idéia de se criar uma delegacia da mulher, a ser composta por policiais do sexo feminino e especializada em crimes contra mulheres. Então, em agosto de 1985, foi criada a “Primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher” do Brasil e da América Latina (Decreto 23.769/1985). Tal feito foi amplamente coberto por todas as mídias ao seu alcance e desde então vem sempre sendo ressaltada sua importância, mas o movimento feminista – e as vítimas por alí atendidas -  vem também, desde a época, afirmando que não bastariam que fossem apenas mulheres atendendo mulheres, mas que seria necessária essa capacitação, que anos depois, veio a Lei nº 11.340/2006 defender, exigir e garantir. 


Embora a finalidade da delegacia fosse receber vítimas de violências físicas e sexuais cometidas por desconhecidos, foram surpreendidos pelo número de mulheres agredidas no seio de seus lares e o intuito desse ambiente, que era dar um atendimento mais humanizado e acolhedor em todos esses casos, começou a ser, de forma assustadoramente recorrente, denunciado do contrário.

Vemos vítimas dizendo que passaram uma vida inteira de violência por medo de denunciar, já que os casos de queixas mal sucedidas ou pouco eficazes, são alarmantes. 
Relatos surgem todos os dias nos tabloides e coletivos feministas: delegadas que menosprezam a vítima, juízes que afirmam que as mesmas “gostam de apanhar” e até mesmo as prendem em celas masculinas, deixando-as a mercê de novas violências físicas, sexuais e até a morte, como vimos recentemente em um caso amplamente divulgado. Tudo isso me leva a crer, mais uma vez, que na prática, a teoria é outra e então, trazer o questionamento e levantar o debate, que é mais uma vez o objetivo do meu post: o que precisamos fazer para que um dispositivo tão fundamentado, consistente e importante venha se fazer valer da forma que precisamos?



É sabido que temos verbas o suficiente para a capacitação, conscientização e todos os outros termos usados exaustivamente nesse texto no âmbito de criar um ambiente propício e auspicioso às mulheres que dele necessitam. Mas talvez, seja preciso, com urgência, que se mude nossa cultura, sem que se façam valer vidas pela incompetência do judiciário e do governo em sanar estes problemas. Quem sabe, não seria um começo, se antes de nos vangloriarmos pela lei reconhecida mundialmente, mudássemos nossos lemas populares, porque em briga de marido e mulher, deve-se, sem titubear, meter a colher, as leis e as algemas. Mulher não gosta de apanhar, ninguém gosta. Não existe “mulher de bandido”, existe mulher. E por fim, se as Marias vão com as outras, quem sabe não seja a hora de ir com a Penha, fazer valer um direito que foi garantido a base de um tiro na espinha e cadeira de rodas, suado e chorado, importante demais para ser agora, ineficaz por falta de foco e em nossas delegacias ignorado.A lei é das Marias... E nossas delegacias, são de quem?




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REFERÊNCIAS

As Políticas Públicas em Goiás na Efetivação de Lei Maria da Penha, editora PUC Goiás
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htmhttp://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/08/delegacia-da-mulher-deu-inicio-ha-30-anos-a-politicas-de-combate-a-violenciahttp://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25248

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