O contínuo processo
evolutivo do Estado promoveu uma profunda transformação no campo do fenômeno
tributário. Essa mudança ocorreu, principalmente, devido a cisão entre a
propriedade e o Estado, resultado das revoluções econômica e política que
despontaram na França e Inglaterra[1].
Com o advento do Estado Contemporâneo,
o governo passou a depender financeiramente da cobrança de tributos e a tributação deixou de ser simplesmente uma relação de poder da autoridade soberana
que a estabelecia.
Ademais, o
intervencionismo estatal, marcado pela experiência socialista da
Revolução Russa de 1917, renovou o debate acerca da finalidade do Estado e do
desempenho da função social a ele atribuída, demandando a promoção de direitos
sociais e a distribuição equitativa de bens.
Posteriormente, as
experiências vividas no pós-guerra impulsionaram a redefinição do Estado
Social, consagrando políticas de redistribuição de renda, à luz da perspectiva
constitucionalista e do projeto democrático.
Desse
modo, a atividade tributária, na sua concepção atual, tornou-se tanto
instrumento estatal de arrecadação de receitas para o custeio dos gastos
públicos, quanto mecanismo de promoção de direitos constitucionalmente
consagrados. É nesse sentido que Liam Murphy e Thomas Nagel iniciam seu livro
“O mito da propriedade”:
Numa
economia capitalista, os impostos não são um simples método de pagamento pelos
serviços públicos e governamentais: são também o instrumento mais importante
por meio do qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de
justiça econômica ou distributiva.[2]
Sob
essa perspectiva, a doutrina desenvolveu a ideia de fiscalidade e
extrafiscalidade para representar as finalidades do tributo.
O
tributo apresenta função fiscal quando sua intenção é essencialmente
arrecadatória, visando tão somente à captação de recursos para os cofres
públicos. A função fiscal do tributo é responsável pelo financiamento e
manutenção da atividade estatal. É por meio da arrecadação de receita que o
Estado obtém o suporte financeiro adequado para a sua sobrevivência e para a
implementação de políticas públicas destinadas à satisfação das necessidades
coletivas dos membros daquela comunidade.
A
finalidade extrafiscal, por sua vez, pode se apresentar tanto no âmbito
regulatório, quando o tributo busca intervir em determinas situações ─ sociais,
políticas ou econômicas ─ para corrigir externalidades, estimulando ou
desestimulando certos comportamentos, como também pode se revelar como
“instrumento de política fiscal efetivamente transformador da realidade social”[3], isto é, a tributação torna-se mecanismo
fundamental na formulação de políticas públicas adequadas ao enfrentamento das
desigualdades existentes na sociedade[4].
A
justiça fiscal, portanto, só é garantida se a intervenção estatal coexistir com
uma política de gastos públicos de caráter social, devendo haver
correspondência entre os recursos arrecadados, as despesas realizadas e o
esforço tributário realizado pelos contribuintes, o que assegura a própria
legitimidade do Estado Social[5],
cuja concepção repercute no constitucionalismo democrático contemporâneo.
Nesse
mesmo sentido, afirma Dworkin[6]:
Taxes are the principal mechanism through which
government plays this redistributive role. It collects money in taxes at
progressive rates so that the rich pay a higher percentage of their income or
wealth than the poor, and it uses the Money it collects to finance a variety of
programs that provide unemployment and retirement benefits, health care, aid to
children in poverty, food supplements, subsidized housing, and other benefits.
É
sob essa perspectiva que José Casalta Nabais[7] defende a ideia de que a solidariedade
torna-se o alicerce do fenômeno tributário, o qual demanda a responsabilidade
solidária dos cidadãos, enquanto integrantes de uma comunidade, para a
contribuição da manutenção e desenvolvimento da sociedade.
A
própria Constituição Federal brasileira estabelece, em seu artigo 3º, como
objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e redução das
desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação.
O
tributo não existe (somente) devido ao caráter impositivo disposto na lei, mas
reflete a pretensão coletiva de custeio dos gastos públicos, na medida da
capacidade econômica de cada um. A própria acepção do termo contribuinte
reflete o seu caráter contributivo para o financiamento do bem estar social de
todos.
Não
se olvida aqui o desconforto em pagar tributos decorrente de inúmeros problemas
sociais e políticos, dentre os quais se destacam a nefasta corrupção que
assombra a arrecadação de receita, a ineficiência dos serviços públicos e a
excessiva e desigual distribuição da carga tributária. É indiscutível que a atual
matriz tributária brasileira não reflete os ideais de justiça social previstos
na Constituição Federal[8].
No
entanto, as falhas cometidas pelo Estado não são suficientes para retirar do
tributo a força e a importância que este desempenha na sociedade contemporânea,
tampouco servem de justificativa para o inadimplemento das obrigações
tributárias, sob pena de inviabilizar a própria convivência em sociedade. De
fato, os prejuízos práticos obstariam os eventuais benefícios distributivos do
tributo, e, por isso mesmo, são importantes e devem ser discutidos, mas só
podem sê-lo tendo em vista a própria função da tributação. Não se pode desvalorizar
o fenômeno tributário em decorrência das falhas na sua execução sem observar
as garantias fundamentais que alicerçam os anseios sociais dessa exação.
[1] Cf. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva
para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil In: GASSEN,
Valcir (Org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira:
Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília:
Consulex, 2012, p. 34-38
[2] MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a
justiça. Tradução: Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5
[3] BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. A construção do estado social brasileiro na transição da modernidade: a extrafiscalidade como instrumento de legitimação do estado social na perspectiva funcional do direito. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2013, p. 100
[4] Ibid., p. 177-186
[5] Ibid., p. 180
[6]
DWORKIN, Ronald. Is democracy possible
here?: principles for a new political debate. Princeton University Press: New
Jersey, 2006, p. 92. Em tradução livre: “Os tributos
são o principal mecanismo através do qual o governo desempenha este papel
distributivo. Ele recolhe dinheiro através de impostos calculados por meio de
alíquotas progressivas de modo a que os ricos paguem uma percentagem mais
elevada dos seus rendimentos e de sua riqueza do que os pobres, e então utiliza
o dinheiro que recolhe para financiar uma variedade de programas que
proporcionem benefícios aos desempregados e aos aposentados, serviços de saúde,
ajuda a crianças pobres, suplementos alimentares, habitação subsidiada, e
outros benefícios”.
[7] NABAIS, José Casalta. Considerações sobre a sustentabilidade do
Estado Fiscal. In SARAIVA FILHO; GUIMARÃES (Coords.). Sigilos bancário e fiscal: homenagem ao Jurista José Carlos Moreira Alves. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 648
[8] Tendo
em vista o objetivo aqui almejado e a limitação de espaço, a discussão sobre os
problemas da matriz tributária brasileira será abordada em outro momento. Para
maiores informações sobre o tema, mostra-se oportuno conferir os dados
apresentados pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES que
demonstram os problemas existentes na atual matriz tributária brasileira, quais
sejam: o ônus tributário é mal distribuído, gerando um sistema altamente
regressivo; o retorno social é baixo em relação à carga tributária; a estrutura tributária desincentiva as
atividades produtivas, e, consequentemente, a geração de empregos e renda; há
desequilíbrio na partilha federativa em relação às competências tributárias,
responsabilidades e territorialidades; e inexiste cidadania tributária. Cf. CDES. Indicadores de Iniquidade do
Sistema Tributário Nacional. Relatório de observação nº 2. Brasília,
jul. 2011. Disponível em: <http://www.cdes.gov.br/documento/3057656/>. Acesso em 09/10/2016, p. 17-35.
O artigo por si escrito traz muita bagagem. Gostei muito porque depois da minha leitura, ajudou no meu trabalho da cadeira de infrações tributarias. Onde respondia um trabalho com o tema: A tributação como contribuição para a construção de uma sociedade solidaria no estado democrático e de direito.
ResponderExcluirMestrado em direito fiscal e aduaneiro, Moçambique.