quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A laicidade do Estado e o aborto

Antes de se falar sobre qualquer assunto polêmico, há de se esclarecer algumas coisas. Eu, grande fã de dicionários que sou, quero começar lhes trazendo alguns significados. Temos ouvido e repetido muito por aí quando o assunto são os direitos das mulheres e tudo que permeia o tão em voga, movimento feminista, que o "Estado é laico e o meu corpo também", mas será?!
Para refletir sobre este questionamento, vamos ao Aurélio:

Laicidade: qualidade do que é laico.
Laicismo: doutrina que tende a dar às instituições um caráter não religioso.
Laico:  que não sofre influência ou controle por parte da igreja, que ou quem não pertence ao clero ou não fez votos religiosos.

Tendo dito isso, saímos da breve aula de semântica e vamos aos fatos: embora cresçamos ouvindo que uma mentira repetidas muitas vezes torna-se verdade, na prática, não é assim que funciona e de fato, a qualquer observador atento, fica claro que o nosso Estado é tudo, menos laico. Mas calma, não rasguem ainda as certezas adquiridas na internet, eu vim pra explicar!
Em suma: o Estado brasileiro não é totalmente laico, mas passa por um processo de laicização. A Constituição do Império foi promulgada por Dom Pedro I “em nome da Santíssima Trindade”. O catolicismo era religião oficial e dominante. As outras religiões, quando toleradas, eram proibidas de promover cultos públicos. O clero católico recebia salários do governo, como se fosse formado de funcionários públicos, característica essa que permanece até hoje, de um jeito ou de outro, com as bancadas religiosas no plenário e toda a pressão que exercem no congresso. Alias, a  chantagem religiosa não é incomum nessa área, como a ameaça de excomunhão. Há símbolos religiosos nas repartições públicas, inclusive nos tribunais.

Antigamente nosso Código Penal proibia a divulgação de doutrinas contrárias às “verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma”. Os professores das instituições públicas eram obrigados a jurar fidelidade à religião oficial e só os filhos de casamentos realizados na Igreja Católica eram legítimos. Imagine, então, falar sobre aborto nesse cenário?
Mas a  situação de hoje é bem diferente. Embora as sociedades religiosas não paguem impostos e recebam subsídios financeiros para suas instituições de ensino e assistência social, entre tantos outros privilégios e apesar da expressão Estado laico não constar em lugar algum de nossa Constituição vigente,  podemos encontrar em seu art. 19 entre as vedações à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, está a de:

                          “Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. 

Com todo esse cenário feito, em um país que tem movimentos ávidos pela efetivação dessa laicidade, entre abaixo-assinados, manifestações de todas as formas, talvez a mais polêmica, debatida e gritada dos últimos anos, tenha sido o tema deste post: o aborto.
O Código Penal, prevê prisão de um a três anos para quem aborta de propósito. Só há três casos em que o aborto provocado é legal: quando não há meio de salvar a vida da mãe, quando a gravidez resulta de estupro e quando o feto é anencéfalo. E há de se dizer que mesmo nesses três casos, pode-se haver polêmica e até mesmo, ressalvas quanto a liberação. Mas isso nunca impediu que se abortasse no Brasil: segundo o IBGE 8,7 milhões de brasileiras, entre 11 e 49 anos, já abortaram por aqui, entre elas, estima-se que pelo menos, 1,1 milhão foi provocado pela própria gestante.  Além disso, por causa da existência da previsão legal citada acima, o próprio senso estima que exista quase o mesmo número de casos, jamais notificado e contabilizado. 

No Brasil, o aborto tem cor e renda.  Ainda segundo o IBGE, no Nordeste, o número de mulheres em condição de pobreza extrema e que realizaram aborto clandestino, sem ter instrução prévia alguma é sete vezes maior do que o de mulheres com o superior completo. Além disso, entre mulheres pretas, o número chega ao dobro da quantidade de procedimentos realizados em mulheres brancas. 
E nesses números alarmantes e assustadores, não trazemos todos os abortos feitos em clínicas clandestinas, em casa e com uso de remédios. É um assunto que merece atenção.

As bancadas religiosas trazem ao plenário o direito a vida, ou o que chama  de "pró vida" e direito ao nascimento. Gritam aos quatro cantos que o direito sobre o próprio corpo não se estende ao corpo que dentro dele, em seus úteros, as mulheres carregam. Do outro lado, as mulheres, desesperadamente, afirmam: meu corpo, minhas regras. Pedem o direito de escolha sobre suas próprias vidas e explicam sobre a taxa de mortalidade: segundo estimativa da ONU, a cada nove minutos (sim, minutos) morre no Brasil uma mulher ou menina, em decorrência do aborto clandestino. A Organização das Nações Unidas, declarou que a questão da descriminalização do aborto no nosso país, é questão de urgência e saúde pública, em últimas reuniões, pontuaram sobre o exemplo da Suécia, que comemora agora seu quadragésimo aniversário da descriminalização deste ato e alguns países latinos, que tiveram números de mortalidade extremamente reduzidos após a legalização e regularização do procedimento.
Mas todos os pontos favoráveis, inclusive o de se entender que um país que legaliza o aborto, não é nem de longe, um país que valida ou tampouco incentiva o mesmo, mas apenas um Estado que entende a importância das vidas que se perdem em busca de, são constantemente barradas pelas autoridades com preceitos religiosos, sendo exemplo disso nomes tão falados como Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha, etc. As bancadas religiosas se mostram, como dito, fortes, vale lembrar que existem quatro frentes parlamentares contra a legalização do aborto, uma delas com mais de 200 deputados (e a nossa câmara conta com apenas 513 cadeiras). A maioria dos participantes destas frentes até declaram abertamente estar a serviço de sua Igreja, deixando de lado o dever de representar os direitos políticos e laicos de seus eleitores. Por fim, com todos esses fatos apresentados, a finalidade deste artigo é levantar o seguinte debate: até onde já se conseguiu fazer laico nosso Estado e até que ponto, a parte religiosa que ainda nos resta, pode influir sobre as leis de aborto? O que será que vale mais: as vidas que se perdem ou as brigas que se ganham em nome da religião ou da política?

O Estado é laico, dizem, mas e as leis de aborto, também?Resultado de imagem para laico tirinha





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REFERÊNCIAS

CF/88
Código Penal Brasileiro
IBGE
As Políticas Públicas em Goiás na Efetivação da Lei Maria da Pena, editora PUC
https://prezi.com/cqjzufyhd97j/dsadas/?utm_campaign=share&utm_medium=copy
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/estado-brasileiro-nao-e-laico.html
https://dicionariodoaurelio.com/
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/conteudo_283054.shtml?func=2
http://tirasarmandinho.tumblr.com/page/6

4 comentários:

  1. Parabéns, texto sucinto, objetivo e muito embasado. Continuem assim!!

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    1. Muito obrigada pelo feedback, Roseli, fico muito contente que tenha gostado!

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  2. "...que tiveram números de mortalidade extremamente reduzidos após a legalização e regularização do procedimento."

    Números de mortalidade (de mulheres) extremamente reduzidos que buscaram tal procedimento em detrimento do aumento das mortes de crianças, pois imagino que uma vez sendo ilegal, ainda assim há estimativas de mais de 1 milhão de abortos provocados pela própria gestante, quanto mais sob o aval e financiamento do Estado.

    Partindo do princípio do direito à vida, por que a vida da mulher, nesse caso, seria mais importante que a vida que está dentro dela? Sob qual ponto de vista pode-se arbitrariamente decidir qual dos dois pode morrer?

    Se o lema é "meu corpo, minhas regras" então também não quero intervenção do Estado para decidir usar ou não cinto de segurança no meu veículo, ou o capacete, se caso pilotasse motoclicleta, sob pena de ser multado ou ter o direito de ir e vir comprometido. Tbm não quero sofrer sanções ou ser demitido do meu trabalho por não fazer uso de equipamentos de segurança, conforme prevê a legislação trabalhista. Fato é, ilude-se quem acha que o Estado não intervém no que tange ao corpo do indivíduo. Sequer andar nu em público é possível, sob pena de ser preso.

    A mulher grávida tem, ou deveria ter, o Estado para protegê-la e ampará-la. Até quem cometeu um crime tem direito a um procurador público num julgamento. E quanto ao nascituro, quem irá protegê-lo? Pelas leis naturais, esse deveria ser o papel dos genitores, essencialmente da mulher, mas e quando ela quer assassiná-lo? Eufemismo a parte, mas aborto na prática é o nome que se dá ao ato da mãe matar o filho ainda no ventre.

    A autora usou a questão social para justificar a maior incidência de mortes em mulheres de baixa renda, então presume-se que o Estado tbm deveria financiar o aborto. E se eu, assim como milhares de brasileiros que condenam tal prática, não quisermos ser colaboradores de tal financiamento? Afinal, nossos impostos estão aí para isso.

    O Estado pode estar caminhando para o laicismo, mas como financiador de políticas públicas, o cidadão deveria ter o direito de intervir sobre decisões que afetam diretamente sua individualidade, suas convicções e até mesmo suas crenças.

    Acredito que sob qualquer circunstância deve legalizar, financiar, realizar ou incentivar o aborto, mas na impossibilidade disso ocorrer, o mais coerente seria submeter tal tema a um plebiscito e deixar que as individualidades exponham sua opinião sob um ato que por ventura,venham ser co-responsáveis, financeiramente falando.

    Alguns autores pró-aborto apelam para conceitos biológicos quanto ao que venha ser um aglomerado de células ou embrião, como forma de minimizar a questão sob ponto de vista humano. Fato é, se não interromper a gestação , é um ser humano em formação de qq forma. Não é um conceito. É vida.

    Esta é a frase mais cliché junto aos movimentos pró-vida, mas a verdade é que só apóia o aborto quem já nasceu.


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    1. Oi Julio!

      A autora, no caso, eu, não fiz "uso" de opiniões ou estatísticas para justificar nada, apenas apresentei os dados retirados do IBGE, quem os colheu e os afirma é o senso, e não eu. Tendo dito isso, em momento algum foi dito sobre financiamento estatal ao aborto, mas sim, sobre a descriminalização do ato, o que não necessariamente, implica no "financiamento" do Estado para tal, seja por meio da saúde pública ou qualquer que seja o meio, apenas, reitero, apresentados dados e a relação da laicidade das leis com as leis de aborto.
      Deixando claro que em parte alguma foi deixada minha opinião pessoal e nem colocados argumentos pró-aborto, tampouco, pró-vida.
      No mais, você, eu e todos os brasileiros, pagantes de impostos e cidadãos com direitos garantidos temos todo o aval, direito e liberação para ir contra qualquer ideia, lei ou posicionamento político, e respondendo a sua seguinte pergunta: " se eu, assim como milhares de brasileiros que condenam tal prática, não quisermos ser colaboradores de tal financiamento? Afinal, nossos impostos estão aí para isso.": há de se fazer valer seu dinheiro investido na democracia, através de votos, expressão de sua opinião, entre tantas outras formas!
      Este texto teve como preceito levantar um debate, uma reflexão... E não, de forma alguma, escolher lados ou se posicionar politicamente.

      Agradeço imensamente pela seu feedback e comentário! :D

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